Assim como milhares de professores brasileiros, assisti e aplaudi o pronunciamento da professora Amanda Gurgel, pois vivemos situações semelhantes...
Note bem: “semelhantes”, pois o nosso cotidiano é bem mais complexo e menos cômodo.
Ela pode exibir o contracheque em rede nacional, eu não!
Seria humilhante, tanto para mim, quanto para os colegas. Sou graduada por uma universidade pública, pós-graduada, fui aprovada em dois concursos públicos da mesma rede educacional. Mas, meu contracheque não posso exibir.
Seria humilhante, tanto para mim, quanto para os colegas. Sou graduada por uma universidade pública, pós-graduada, fui aprovada em dois concursos públicos da mesma rede educacional. Mas, meu contracheque não posso exibir.
Ela pode ir de ônibus ou de carro, eu não!
Não tenho carro, não sei dirigir e não tem ônibus que faça o percurso de quase três quilômetros da minha casa à escola, contudo, se tivesse iria a pé mesmo, porque não tenho como arcar com uma despesa a mais.
Ela pode multiplicar o salário por três, eu não!
Tenho que planejar uma única aula de diversas formas, pois, esta irá depender da aceitação dos meus alunos a cada manhã. Somado a este múltiplo planejar (Acolhida, curtindo a leitura, correção do “Para Casa”, desenvolvimento da atividade, revisão do dia, e encaminhamento do “Para Casa” , todos subordinados aos objetivos delimitados em consonância com cada atividade proposta) tenho ainda a rotina burocrática: preencher cotidianamente fichas de acompanhamento mensal, acompanhamento de livros lidos, ficha de leitura, diário de classe, redefinição do cronograma do reforço escolar, etc. Logo, humanamente falando não posso assumir um terceiro turno, já que o segundo é destinado ao reforço escolar e o terceiro é comprometido com o constante planejar.
Some-se ao crescente planejar os afazeres domésticos: lavar, passar, cozinhar, limpar casa, etc., porque com a remuneração que percebo mensalmente não posso pagar a auxiliar de serviços domésticos.
Ela disse que não pode esperar por melhorias no sistema para qual trabalha.
Eu posso?
O “cuscuz alegado” dispensa comentário, porque o cafezinho que bebo na escola, eu faço absoluta questão de custear.
O estado que ela reside e trabalha faz concursos públicos, o Piauí faz testes seletivos, talvez para enxugar o orçamento, minimizar as despesas com encargos sociais, questões trabalhistas inerentes aos vínculos empregatícios.
Ela descreveu de forma sucinta a sua rotina.
Farei menção a apenas algumas vivências para justificar um pedido às autoridades municipais, estaduais e federais: Direcionem um olhar a esta realidade e ajudem os professores a transformar estas crianças em cidadãos
Como?
Através da valorização do profissional da educação conforme reza a legislação educacional vigente:
Constituição Federal artigo 206, inciso V
[...]valorização dos profissionais do ensino, garantindo, na forma da lei planos de carreira para o magistério público, com piso salarial profissional e ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, assegurado regime jurídico único para todas as instituições mantidas pela União. (BRASIL, 1988)
LDB 9694/96 Art. 3° Inciso VII “valorização do profissional da educação escolar;” (BRASIL, 1996).
Em relação ao que a Lei impõe como competência docente constante no Art. 13...
Os docentes incumbir-se-ão de:
I – participar da elaboração da proposta pedagógica do
estabelecimento de ensino;
II – elaborar e cumprir plano de trabalho, segundo a
proposta pedagógica do estabelecimento de ensino;
III – zelar pela aprendizagem dos alunos;
IV – estabelecer estratégias de recuperação para os alunos
de menor rendimento;
V – ministrar os dias letivos e horas-aula estabelecidos,
além de participar integralmente dos períodos dedicados
ao planejamento, à avaliação e ao desenvolvimento
profissional;
VI – colaborar com as atividades de articulação da escola
com as famílias e a comunidade. (BRASIL, 1996)
... Devo ressaltar que tenho me empenhado para não descumprir nenhuma destas normas e das demais ditadas pelo sistema ou pela equipe gestora, até porque, pode gerar ônus e o meu salário não permite que eu me dê ao luxo de ter algo descontado no final do mês.
Ajude-nos também a lidar com as diversas vicissitudes que nos afetam cotidianamente, circunscritas na miséria humana. Ao me reportar à miséria não me restrinjo apenas à financeira, mas, a: social, moral, cultural e psicológica, evidenciadas nas diversas formas, tais como:
Alunos sonolentos afetados por violências em seus lares (brigas envolvendo as mães e seus companheiros, geralmente padrastos) ou na circunvizinhança, impedindo-os de ter uma noite de sono reparador;
Aluno que passou a noite em festa (mesmo menor de idade),
Aluno com medo de invasão domiciliar a exemplo do ocorrido em casas vizinhas;
Crianças que a mãe trabalha a noite em bares e restaurantes, não tendo com quem deixá-las, leva-as para o trabalho, logo, só podem dormir ao retornarem para casa altas horas;
E casos incomuns de criança que a mãe ministra aleatoriamente sonífero para poder sair à noite.
Aluno faminto por falta do desjejum, às vezes até tem a massa para o cuscuz, mas a mãe tem que sair cedo e não tem tempo para preparar, outras vezes não há nada a fazer.
Órfãos de pais vivos criados por avós, tias, parentes que talvez nem tenham tanto tempo para verificar as necessidades básicas.
Aluno totalmente desmotivado pela carência cultural que o cerca. Este exemplo vale à pena ilustrar:
Na tentativa de motivá-los sempre falo que a escola prepara para o sucesso na vida adulta: aprovação no vestibular ou concurso, porta aberta para um bom emprego e uma vida digna. Eis algumas respostas:
“Professora, tu passou no vestibular, estudou ai na universidade, passou em concursos e vive aqui nesta vida, eu não quero ser igual a você. Ganhar pouco e lidar com esse povo teimoso.” (Menino de 11 anos)
Professora, meu pai não estudou e tem dinheiro e carro bom e tu não tem. (Criança de 10 anos)
Não perguntei a profissão do pai, melhor não saber.
“Professora meu tio tá é na cadeia preso, os fios dele recebe cada um mais de 700 real todo meis, é quase o dobro do professor, quando eu crescer mato um, vou pra cadeia e meus fios recebem dinheiro. Pra que estudar ou trabaiar?” (Menino de 12 anos)
“Fessora pra quê estudar e trabaiar, só venho pra cá porque minha mãe não quer perder a bolsa famia, ela diz que vocês tão aqui é pra agüentar mermo os desaforos que nois quiser, pra isso estão ganhanu dinheiro.” (Menina de 9 anos)
Não posso incluir neste texto as agressões verbais trocadas entre alunos e dirigidas as professoras, haja vista, que devo levar em consideração a educação que recebi em família, nunca proferir palavras de baixo calão.
Assim é o convívio com as crianças... O atendimento às mães é delicado, degradante e sofrido, para as professoras
Elas negligenciam os filhos em todos os seus direitos fundamentais. (alimentação, educação, habitação, saúde etc.). Nesse cenário a agressão física e verbal é recorrente, então, exigem que a professora supra toda e qualquer carência dos filhos. Quando a criança chega em casa com uma queixa seja verídica ou não, elas vem à escola com ameaças. Ameaças das mais variadas: “Tapa na cara”, “taca lá fora”, denúncias aos chefes políticos, à imprensa etc.
A professora Amanda ressaltou que quando o assunto é o preceito legal “educação de qualidade”, autoridades e a sociedade como um todo cobram apenas do professor. Foi enfática ao afirmar que esta não é uma atribuição exclusiva do professor, mas do Estado. Acrescentou ainda que, não pode salvar a humanidade apenas com o quadro e o giz. Neste espaço, desejo reiterar, sua colocação e indignação diante da realidade da Educação Brasileira.
Portanto, a questão que se interpõe é: a qualidade da educação pressupõe, entre outras coisas, a valorização do profissional. Onde está a valorização do profissional que cotidianamente tem que lidar com estas e outras vicissitudes?
Na remuneração?
Na ausência de uma equipe multidisciplinar?
Na formação continuada insignificante?
Na carência estrutural das escolas?
Nas mais variadas pressões de chefes, de alunos e pais de alunos?
Na auto-estima submersa na pressão, na falta de respeito, apoio, autonomia e dignidade?
Diante do exposto quero conclamar as autoridades para ajudar não apenas uma professora, mas, todos os profissionais da educação (exceto aqueles que discordam deste ponto de vista) a transformar esta realidade e efetivamente formar cidadãos.
Referências:
BRASIL. Lei n° 9.394 que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L9394.htm> . Acesso em 06.06.2011
BRASIL, Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em 06.06.2011